A paixão segundo G.H.? Não, a paixão segundo Janair. (Narrativa Literária - LETE45)
Sinopse de A paixão segundo G.H.:
Invisível. Ainda
queria entender como eu, negra desse jeito, fui apagada dessa forma.
Entretanto, o impossível tornou-se possível e foi exatamente isso que eu me
tornei durante os seis meses em que trabalhei naquele espaço, que queria
representar uma casa, um lar e falhou, pois, ao mesmo tempo em que a cobertura
levava para as alturas, trazia também o vazio que lá habitava. Em primeiro
momento, achei que seria bom ter conseguido aquele emprego, visto que o mesmo
era suficiente no momento, mas, desde o primeiro dia, eu me sentia (poderia
usar o verbo via ou enxergava, contudo, como eu disse, eu
era invisível, quase não existia) como uma intrusa naquele ambiente.
Um mês se foi e
eu estava mais uma vez no quarto em que ficava, dessa vez me ajeitando para
dormir enquanto eu sentia e ouvia o silencio da madrugada. G.H. havia convidado
umas pessoas para uma pequena reunião em sua casa, o dia havia sido longo, cheio
de risadas e de conversas bem animadas. Eles pareciam empolgados conversando,
comendo e bebendo, acho que por isso nem repararam em mim direito, apesar de eu
ser um ponto preto em meio à neve, o assunto e suas distrações próprias
sobressaíram bem mais que eu servindo todos eles. Paciência. Não estou aqui
para rir ou conversar, como ouvira uma outra vez de uma antiga patroa. Sem
distrações, apenas trabalho. Pessoas contavam comigo, aquelas que realmente me
enxergavam. Minha família e meu futuro (esse eu sonhava e precisava que ele me
enxergasse, pois eu trabalhava muito para isso).
Já faziam dois meses que eu estava nesse lugar e o desconforto não poderia ser maior (na verdade, eu nem deveria pensar isso, vai que piora). Essa casa parecia se tornar cada vez maior e vazia, eu me sentia sozinha. Então, certa noite quando eu estava deitada em ‘‘minha cama’’ decidi que iria pensar em algo que fizesse aquele pequeno cômodo ser mais meu, parecer mais vivo, fazer com que ele realmente existisse, assim como eu deveria ser naquele lugar. Eu sempre apreciei artes em geral, adorava desenhar e tinha até um caderno próprio com desenhos que eu fazia em momentos de inspiração ou apenas para me distrair. A partir disso tive a brilhante ideia de desenhar na parede do quarto. Ri sozinha imaginando como ficaria e se aquilo me traria problemas. Mas acho que não, ela nunca nem chegava perto dessa parte da casa, muito menos entrava aqui. Talvez, assim como eu, esse quarto seja invisível. E eu espero que continue assim, não quero me meter em encrencas.
Depois de muito pensar no que eu iria desenhar, resolvi começar tentando fazer o meu fiel companheiro: Cadu, meu cachorro que havia ficado com a minha família. Eu sentia falta da companhia dele, quem sabe o desenhando esse local fique mais aconchegante e diminua a saudade de casa. Bom, a intenção foi ótima, mas eu acho que meus desenhos ficam melhores no papel ao invés dessas enormes paredes. Mais uma vez ri sozinha e pensei ‘‘Pelo menos temos aqui uma memória engraçada e, em parte, foi divertido’’. Uma distração fazia bem para qualquer um.
No terceiro mês, eu meio que já estava acostumada em não existir. Falava apenas quando me perguntavam ou cumprimentavam, o que não acontecia muito, então eu era quase muda. Em compensação, o meu pequeno quarto tornou-se um refúgio onde eu podia ser eu, colocar uma música no radinho, ler meus livros ou simplesmente olhar as estrelas pela janela que, diga-se de passagem, tinha uma vista muito linda. Hoje, diferentes dos outros dias, era uma data especial: meu aniversário. Então, resolvi sair de noite para quem sabe arrumar uma diversão a mais. Assim que terminei meus afazeres e a noite chegou, quando G.H. estava indo dormir, eu a informei que iria sair, visto que a mesma não precisaria mais de mim. Ela apenas me disse para não volta tarde, logo eu concordei, agradeci e sai feliz para me arrumar.
Naquela noite eu
não fui muito longe de ‘‘casa’’, fiquei pela praia que tem lá por perto,
encontrei algumas pessoas, conversei um pouco, me dei ao luxo de comer coisas
gostosas que não sentia o gosto há muito tempo e apreciei a vista marítima que
estava a minha frente. Por um instante minha atenção foi tirada do mar e
voltou-se para um casal que por ali passeava. Eles estavam felizes, rindo,
conversando, aproveitando um ao outro. Acho que nem se eles quisessem,
conseguiriam ser invisíveis, o brilho deles não permitiria. Não os conhecia,
porém estava feliz por eles. Voltei para meu quartinho pensando em como a noite
tinha sido boa. Foi aí que eu tive a ideia: iria desenhar o casal na parede.
‘‘Mas por que, Janair? ’’ Eu queria memorizar aquela felicidade, aquele brilho,
ser daquele jeito. Toda manhã eu veria aquele desenho e isso me lembraria que
no futuro eu teria aquele brilho, não seria mais invisível.
Mais uma vez meus dons artísticos não foram muito bem aceitos pela parede, nem o carvão cooperava com os traços, porém, repito, o que importa é a lembrança e o objetivo por trás daquelas figuras e as risadas que eu dei produzindo-as.
O quarto mês chegou e as coisas continuavam iguais. Eu acordava, fazia o que tinha que fazer, obedecia ao que tinha que obedecer e assim o dia seguia. Perto de anoitecer, G.H. saiu e quando voltou já era tarde, mas ela estava com alguém. Fiquei rezando para que ela não e chamasse para fazer nada, eu tinha me preparado para dormir fazia pouco tempo. Porém nenhum ‘‘EMPREGADA’’ foi escutado.
O ser humano tem algumas necessidades que sempre aparecem em momento que não deveriam acontecer. Nessa noite eu fui amaldiçoada com essas necessidades: eu precisava urgentemente ir ao banheiro; despertei do meu sono apenas para isso e já faziam 30 min que eu tentava esquecer isso e dormir, mas estava quase impossível. Cansei de resistir e fui, de pontinha de pé em pontinha de pé. Quando cheguei na sala tomei um susto: G.H. e a pessoa desconhecida estavam dormindo abraçados no sofá cobertos apenas por uma manta. Minha respiração ficou presa, logo apressei meus pequenos passos e segui para o banheiro tentando não fazer barulho. Na volta, tive o mesmo cuidado, mas, quando cheguei na sala suei frio. G.H. estava de olhos abertos me encarando. Ficamos uns segundos, que pareciam eternidade, nos encarando, mas logo acordei do transe e segui rapidamente para meu quarto. Meu sono foi atormentado por pesadelos. ‘‘Será que eu perdi meu emprego? ’’
O quinto mês
chegou e o pensamento de que meus dias naquele lugar estavam contados também.
Depois daquele ocorrido, na manhã seguinte G.H. resolveu inovar o seu
vocabulário comigo apenas para falar em bom e alto som: ‘‘Não quero você
perambulando pela minha casa tarde da noite, já basta ela manhã’’.
Não tinha o que falar, eu apenas concordei e me desculpei (por precisar ir ao
banheiro, que crime!). O cotidiano continuou o mesmo, as horas se arrastavam e
ao final do dia eu podia finalmente voltar para o meu refúgio. E, se tivesse
sorte de terminar meus afazeres mais rápido que o normal, eu tinha o privilégio
de assistir o lindo finalzinho do pôr-do-sol que pintava meu quarto de laranja.
Apenas aquilo melhorava infinitamente o meu dia.
Sexto e último mês. Depois dessa previsão, acho que irei trabalhar como cartomante (rindo para não chorar). Bom, eu não recebi respostas claras quando questionei o porquê da demissão, mas acho que esses meses responderam a minha pergunta: eu não era bem-vinda. Contudo não me importei, sentimentalmente falando, eu fiz minha parte e agora seguirei com minha vida. A minha única preocupação era o dinheiro que me restara, eu precisava descobrir como iria me cuidar e ajudar a minha família daqui para frente.
Antes de ir
embora, arrumei meu cantinho inteiro com o maior prazer, aquele quarto
tornou-se algo especial e eu espero que a próxima pessoa que ficar aqui cuide
dele e tenha bons momentos também. Agora era hora de voltar para casa ou então
ficar, caso eu consiga um outro emprego com muita sorte; não são tempos fáceis,
ainda mais para mim. Mas temos que ter fé, certo? A vida é uma surpresa e meu
futuro me aguarda ansiosamente.
J.
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